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Por ora, a excepcionalidade deve ser ignorada

Este artigo faz parte da parceria entre o Instituto Liberdade Digital e o Valor Econômico.

Desde o início da pandemia do COVID-19 adiamos tudo o que foi possível, desde um simples corte de cabelo até os campeonatos de futebol. No início ficamos à espera de um retorno rápido à normalidade, mas a cada dia percebemos que há ainda mais incertezas e medo diante dos cenários a frente. No meio disso tudo, como ficam as eleições previstas para outubro de 2020? Será que há possibilidade jurídica de adiamento? Por que não unificar as eleições de 2020 com a de 2022? Quais os caminhos jurídicos e democráticos diante de tanta incerteza?

É da essência do sistema democrático pressupor a certeza sobre a realização de eleições enquanto exige incerteza, ao menos prévia, de quem será ao final o governante. Este cenário é oposto aos sistemas autoritários onde costuma-se ter a certeza de quem será o governante enquanto há a incerteza de novas eleições. Para garantir a certeza de eleições periódicas a Constituição determinou o mandato de quatro anos para prefeitos, vices e vereadores, deixando para o último ano de mandato, no primeiro domingo de outubro, a realização de novas eleições.

Já para garantir a certeza das regras eleitorais e proteger as eleições daquelas mudanças de última hora, a Constituição fixou uma regra de ouro: é permitido mudar as regras do jogo, mas é proibida a surpresa. Por isso, exige-se um intervalo mínimo de um ano entre a publicação de novas regras eleitorais e as eleições.

Um adiamento das eleições enfrentaria, de uma só vez, essas duas garantias previstas pela Constituição. Mas qual a saída democrática para o tema? É agora o momento de decidir sobre isso?

Vale lembrar que uma eleição não deve ser confundida com o dia de votação, ela envolve muitos outros atos, tanto antes quanto depois da votação. Até o momento o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem driblado a pandemia digitalizando e informatizando seus procedimentos. Talvez, os principais desafios ocorrerão em maio, prazo final para regularização dos eleitores, ou ainda, entre os dias 20 de julho e 05 de agosto, período reservado às convenções partidárias. Mas por enquanto, segundo o TSE, teremos eleições em outubro ou, na pior das hipóteses, em novembro ou dezembro de 2020.

Em lado oposto, outra ideia que tem aparecido como proposta é a chamada unificação das eleições, ou seja, utilizaria este momento de pandemia como motivo para prorrogar os atuais mandatos de prefeitos, vices e vereadores para 2022 e, de uma só vez, realizaria eleições para todos os cargos. Me parece, que neste momento, essa é a sugestão mais antidemocrática possível. Diante desta pandemia, tão excepcional quanto temporária, unificar as eleições nada mais é do que cancelar a eleição de 2020 criando uma espécie de mandato de dois anos sem qualquer legitimidade ou voto. Seria uma espécie de “eleição” para um mandato tampão de dois anos, na qual os candidatos não se candidatariam e nem os eleitores votariam. Seria isso democrático? Eu creio que não.

É legítimo discutir a pauta da unificação das eleições em período próprio para a mudança das regras eleitorais, mas trazer este debate em plena pandemia, justamente neste momento de tanta incerteza, parece mais um vaidoso e perigoso oportunismo.

A eleição não é um incômodo ou uma formalidade, é o ápice da participação popular em um sistema democrático e é claro que tem seus custos e todos os seus prazos para execução, rápido mesmo é o autoritarismo cujas consequências são desastrosas e bem mais demoradas do que qualquer processo eleitoral.

Creio que, neste momento, devamos tratar a excepcionalidade de adiamento das eleições assim como a Constituição brasileira de 1988 sabiamente fez: ignorando-a. Mas se um dia chegar a certeza da necessidade inevitável de adiar, que este adiamento seja pelo menor período necessário, ou seja, somente enquanto a eleição for impossível e não pelo período que agrade a uma ou outra categoria.

Link da publicação original: https://glo.bo/2XnO0hh

Publicação no jornal impresso: Edição 4975/20

Diogo Rais

Cofundador e Diretor-Geral do Instituto Liberdade Digital.

Professor de Direito Eleitoral da Universidade Presbiteriana Mackenzie.